Hora certa do Pataquito Aquiraz - CE

quarta-feira, 15 de junho de 2011

O SUICIDA DO TREM


ESCRITO PELO COMPANHEIRO RADIOAMADOR ROBERTO HUGO
 
Eu nunca me esquecerei de que um dia havia lido num jornal acerca de um suicídio

terrível, que me impactou: um homem jogou-se sobre a linha férrea, sob os vagões

da locomotiva e foi triturado. E o jornal, com todo o estardalhaço, contava a tragédia,

dizendo que aquele era um pai de dez filhos, um operário modesto.

Aquilo me impressionou tanto que resolvi orar por esse homem.

Tenho uma cadernetinha para anotar nomes de pessoas necessitadas. Eu vou orando

por elas e, de vez em quando, digo: se este aqui já evoluiu, vou dar o seu lugar para

outro; não posso fazer mais.

Assim, coloquei-lhe o nome na minha caderneta de preces especiais - as preces que

faço pela madrugada. Da minha janela eu vejo uma estrela e acompanho o seu ciclo;

então, fico orando, olhando para ela, conversando. Somos muito amigos, já faz muitos

anos. Ela é paciente, sempre aparece no mesmo lugar e desaparece no outro.Comecei

a orar por esse homem desconhecido. Fazia a minha prece, intercedia, dava uma de

advogado, e dizia: Meu Jesus, quem se mata (como dizia minha mãe) "não está com

o juízo no lugar". Vai ver que ele nem quis se matar; foram as circunstâncias. Orava

e pedia, dedicando-lhe mais de cinco minutos (e eu tenho uma fila bem grande), mas

esse era especial. Passaram-se quase quinze anos e eu orando por ele diariamente,

onde quer que estivesse.

Um dia, eu tive um problema que me fez sofrer muito. Nessa noite cheguei à janela

para conversar com a minha estrela e não pude orar. Não estava em condições de

interceder pelos outros. Encontrava-me com uma grande vontade de chorar; mas, sou

muito difícil de fazê-lo por fora, aprendi a chorar por dentro. Fico aflito, experimento

a dor, e as lágrimas não saem. (Eu tenho uma grande inveja de quem chora aquelas

lágrimas enormes, volumosas, que não consigo verter).

Daí a pouco a emoção foi-me tomando e, quando me dei conta, chorava.

Nesse ínterim, entrou um Espírito e me perguntou:

- Por que você está chorando?

- Ah! Meu irmão - respondi - hoje estou com muita vontade de chorar, porque sofro

um problema grave e, como não tenho a quem me queixar, porquanto eu vivo para

consolar os outros, não lhes posso contar os meus sofrimentos. Além do mais, não

tenho esse direito; aprendi a não reclamar e não me estou queixando.

O Espírito retrucou:

- Divaldo, e seu eu lhe pedir para que você não chore, o que é que você fará?

- Hoje nem me peça. Porque é o único dia que eu consegui fazê-lo. Deixe-me chorar!

- Não faça isto - pediu. - Se você chorar eu também chorarei muito.

- Mas por que você vai chorar? - perguntei-lhe.

- Porque eu gosto muito de você. Eu amo muito a você e amo por amor.

Como é natural, fiquei muito contente com o que ele me dizia.

- Você me inspira muita ternura - prosseguiu - e o amo por gratidão. Há muitos anos eu

me joguei embaixo das rodas de um trem. E não há como definir a sensação da eterna

tragédia. Eu ouvia o trem apitar, via-o crescer ao meu encontro e sentia-lhe as rodas

me triturando, sem terminar nunca e sem nunca morrer. Quando acabava de passar,

quando eu ia respirar, escutava o apito e começava tudo outra vez, eternamente. Até

que um dia escutei alguém chamar pelo meu nome. Fê-lo com tanto amor, que aquilo

me aliviou por um segundo, pois o sofrimento logo voltou. Mais tarde, novamente, ouvi

alguém chamar por mim. Passei a ter interregnos em que alguém me chamava, eu

conseguia respirar, para aguentar aquele morrer que nunca morria e não sei lhe dizer

o tempo que passou. Transcorreu muito tempo mesmo, até o momento em que deixei

de ouvir o apito do trem, para escutar a pessoa que me chamava. Dei-me conta, então,

que a morte não me matara e que alguém pedia a Deus por mim. Lembrei-me de Deus,

de minha mãe, que já havia morrido. Comecei a refletir que eu não tinha o direito de ter

feito aquilo, passei a ouvir alguém dizendo: "Ele não fez por mal. Ele não quis matar-

se." Até que um dia esta força foi tão grande que me atraiu; aí eu vi você nesta janela,

chamando por mim.

- Eu perguntei - continuou o Espírito - quem é? Quem está pedindo a Deus por mim,

com tanto carinho, com tanta misericórdia? Mamãe surgiu e esclareceu-me:

- É uma alma que ora pelos desgraçados.

- Comovi-me, chorei muito e a partir daí passei a vir aqui, sempre que você me

chamava pelo nome.

(Note que eu nunca o vira, face às diferenças vibratórias.)

- Quando adquiri a consciência total - prosseguiu ele - já se haviam passado mais de

catorze anos. Lembrei-me de minha família e fui à minha casa. Encontrei a esposa

blasfemando, injuriando-me: "- Aquele desgraçado desertou, reduzindo-nos à mais

terrível miséria. A minha filha é hoje uma perdida, porque não teve comida e nem paz e

foi-se vender para tê-los. Meu filho é um bandido, porque teve um pai egoísta, que se

matou para não enfrentar a responsabilidade.

Deixando-nos, ele nos reduziu a esse estado.

- Senti-lhe o ódio terrível. Depois, fui atraído à minha filha, num destes lugares

miseráveis, onde ela estava exposta como mercadoria. Fui visitar meu filho na cadeia.

- Divaldo - falou-me emocionado - aí eu comecei a somar às "dores físicas" a dor

moral, dos danos que o meu suicídio trouxe. Porque o suicida não responde só

pelo gesto, pelo ato da autodestruição, mas, também, por toda uma onda de efeitos

que decorrem do seu ato insensato, sendo tudo isto lançado a seu débito na lei de

responsabilidades. Além de você, mais ninguém orava, ninguém tinha dó de mim, só

você, um estranho. Então hoje, que você está sofrendo, eu lhe venho pedir: em nome

de todos nós, os infelizes, não sofra! Porque se você entristecer, o que será de nós,

os que somos permanentemente tristes? Se você agora chora, que será de nós, que

estamos aprendendo a sorrir com a sua alegria? Você não tem o direito de sofrer, pelo

menos por nós, e por amor a nós, não sofra mais.

Aproximou-se, me deu um abraço, encostou a cabeça no meu ombro e chorou

demoradamente. Doridamente, ele chorou.

Igualmente emocionado, falei-lhe:

- Perdoe-me, mas eu não esperava comovê-lo.

- São lágrimas de felicidade. Pela primeira vez, eu sou feliz, porque agora eu me

posso reabilitar. Estou aprendendo a consolar alguém. E a primeira pessoa a quem eu

consolo é você.

Transcrito do livro "O Semeador de Estrelas", de Suely Caldas Schubert.


Um comentário:

Nardinho disse...

Jones, você sempre traz mensagens surpreendendes. Parabéns.